quinta-feira, 31 de março de 2016

Sobrevivente ou mordomo?

Matheus Viana

Trabalho é um aspecto fundamental da vida desde seu início. Não é em vão que chamamos o processo de uma mãe dar à luz um filho de trabalho de parto. Mas não é só isso. A relação sexual da qual se origina o desenvolvimento da vida na mulher ao receber o sêmen do homem pode ser classificada como trabalho no sentido de realização.

Além disto, é crucial considerarmos que Deus criou todas as coisas em seis dias (independente de como você entenda estes dias) e no sétimo descansou. Descansar é o desdobramento de trabalho. O profeta Isaías proclamou: “Desde os tempos antigos ninguém ouviu, nenhum ouvido percebeu, e olho nenhum viu outro Deus, além de ti, que trabalha para aqueles que nele esperam. (Isaías 64:4 – Ênfase acrescentada).

Trabalhar nada mais é do que movimento. Movimento é energia. Sobre isso, o apóstolo Paulo disse: “Pois nele vivemos, nos movemos e existimos.” (Atos 17:28). Nossa vida é fruto do trabalho que Deus realizou ao formar o ser humano do pó da terra e soprar o Seu fôlego de vida a fim de que ele se tornasse um ser vivente (Gênesis 2:7). Somos resultados do trabalho de Deus e é nEle onde estão pautadas nossas existências e consequentes ações (movimentos).

É o trabalho de Deus, o nosso Criador, que viabiliza e sustenta todo e qualquer trabalho. Até mesmo daqueles que trabalham contra Ele, como o Faraó Ramsés ao tentar impedir o povo hebreu de sair do Egito, por exemplo. Sim, esta contrariedade, mesmo sendo resultado de sua liberdade de escolha, contribuiu para os propósitos de Deus. Ele é soberano em toda e qualquer circunstância. Foi baseado neste mote que o salmista declarou: “Se não for o SENHOR o construtor da casa, será inútil trabalhar na construção. Se não é o SENHOR quem vigia a cidade, será inútil a sentinela montar guarda. Será inútil levantar cedo e dormir tarde, trabalhando arduamente por alimento.” (Salmo 127:1-2).

Na esteira deste princípio, o apóstolo Paulo elucidou: “Pois é Deus quem efetua em vocês tanto o querer quanto o realizar, de acordo com a boa vontade dele.” (Filipenses 2:13). Em outras traduções aparece a expressão opera ao invés de efetua. A expressão grega traduzida para ambas no português é energon, que é oriunda de energein, que é traduzida para o português como realizar no referido texto. Ambas dão origem à expressão que conhecemos bem no português: energia.

É consenso que energia foi necessária para o início da existência do universo. A questão é que energia foi esta? Qual sua origem? Gênesis 1:1-3, embora não seja uma descrição em linguagem científica, emite a resposta. Quem não a aceita, ainda está procurando-a. Mas tal procura é baseada no axioma de que, embora desconhecida pela ciência, é algo que antecede a própria existência da energia enquanto elemento natural. Ou seja, sua origem é sobrenatural. Sendo assim, a energia de Deus - Sua realização, Seu trabalho - é a fonte de sustentação para o nosso trabalho, para a nossa energein.

Existem, no entanto, dois tipos de trabalho: o que o ser humano exerceu antes do pecado e o que surgiu como consequência deste. O primeiro está relatado em Gênesis 2:15, que é o princípio de mordomia. Conforme relatei no livro Culto racional:

     “... cultuar a Deus é refletir sua imagem (caráter, ética) sobre toda a criação a fim de exercer o mesmo governo sobre a terra que Ele exerce nos céus. O que também é chamado de mandato cultural: “O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo.” (Gênesis 2:15). A expressão traduzida pelo verbo cultivar é avodah. Este termo se refere ao que podemos chamar de trabalho agrícola, ou seja, cultivar a terra. Mas o que é este cultivar em relação ao culto racional?
     Para respondermos tal questão é necessário refletirmos sobre o termo mordomia. Mordomia implica em administrarmos, cuidarmos do que, embora não seja nosso, foi-nos confiado não apenas com o intento de manutenção, mas também de desenvolvimento. É exatamente isto que o salmista disse em Salmo 115:16. Pois toda a terra pertence ao Senhor (Deuteronômio 10:14, Salmos 24:1). Mas Ele a confiou ao ser humano para ser Seu mordomo (oikonomos, no grego, de onde se origina o termo economia, e que significa administrador da casa). E mordomia demanda racionalidade. Este cultivar, no entanto, é um dos atributos de culto.
     Desta forma, vemos que culto racional não é apenas ser mordomo da criação. Atrelado à mordomia está a relação do ser humano com a criação e também com o Criador. Aliás, a relação com a criação está fundamentada na relação com o Criador. Uma não é possível sem a outra. Por isso Deus formou o homem à Sua imagem (relação com o Criador), a fim de exercer Sua semelhança (relação com a criação). A esta relação chamamos mandato cultural ou cultura. Este é o significado de avodah.".

Mordomia, como podemos ver, é o trabalho como forma de adorar a Deus, de prestar-Lhe culto. Era o trabalho que o ser humano exercia até o advento do pecado original. Todavia, hoje estamos sob o jugo do trabalho que é consequência deste pecado, onde Deus ordenou ao homem: “Com o suor do seu rosto você comerá o seu pão, até que volte à terra. (Gênesis 3:18). Veja que este texto é plenamente contrastante com a advertência emitida por Deus ao homem em Gênesis 1:29-30.

Nosso trabalho é resultado do jugo da maldição do pecado. Ele não visa a mordomia em relação a Deus, mas o próprio sustento. Suas realizações não são mais instrumentos de adoração a Deus, o que implica em trabalhar para que Sua soberana vontade seja plenamente cumprida, mas a sua sobrevivência a qual ele mesmo supriria a partir de então.

Este trabalho é resultado de idolatria. Pois o pecado que gerou tal maldição foi consequência do homem abandonar Deus, através do abandono à Sua vontade, e buscar suprir os seus próprios desejos (Gênesis 3:5-6). Por isso ele é árduo, pois visa a sobrevivência e o enriquecimento obtidos de forma independente de Deus.

O ponto fulcral de um trabalho é o objetivo que ele visa alcançar: a vontade de Deus ou a sobrevivência e enriquecimento próprios. Deus foi claro ao dizer ao homem que enquanto ele exercia mordomia, Ele mesmo lhe provia o sustento (Gênesis 1:29-30). Mas com o surgimento do pecado, tal realidade mudou drasticamente.

O stress é algo comum do homem moderno. É resultado do trabalho árduo que realizamos. O que devemos analisar é se estamos vivendo como sobreviventes ou mordomos. É claro que a provisão de Deus não “vem do céu” literalmente. O sábio Salomão exortou: “Observe a formiga, preguiçoso, reflita nos caminhos dela e seja sábio.” (Provérbios 6:6). Devemos trabalhar para prover o nosso sustento. O próprio Jesus declarou: “Todo trabalhador é digno de seu trabalho.” (Evangelho segundo Mateus 10:10). Contudo, é muito diferente quando o exercemos com a consciência de que não somos meros sobreviventes, mas sim mordomos do SENHOR. E foi exatamente isto que Jesus exortou Seus discípulos no texto citado: trabalharem em prol do Reino de Deus. Esta é a renovação de mente que Paulo preconizou em Romanos 12:1-2.

Jesus disse: “Vinde a mim vós todos que estás cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Pois meu fardo é leve e meu jugo é suave.” (Evangelho segundo Mateus 11:29-30). Ele aqui está conclamando-nos para que deixemos de viver como sobreviventes para que vivamos como mordomos Dele. Pois Ele, através de Seu trabalho na cruz (Isaías 53:11) quebrou toda maldição que o pecado trouxe sobre a humanidade e também o jugo da Lei (Gálatas 3:13) para que sejamos Seus mordomos. É isto que Paulo tinha em mente quando advertiu os cristãos em Corinto (I Coríntios 10:31). Princípio que é conhecido como ética protestante. Porém, é bastante anterior à Reforma. Foi estabelecida pelo próprio Deus no início da Criação.

Infelizmente vivemos, como muitos cristãos já denunciaram à exaustão, uma dicotomia em relação ao trabalho secular e o culto espiritual. Esta dicotomia não existe para um mordomo. Não é em vão que a palavra culto no inglês seja service. Pois somos servos de Deus em todos os momentos de nossa vida, em todas as nossas atitudes. E a nossa forma de servir é sendo mordomos. Ou seja, glorificando e cultuando a Deus também com o nosso trabalho, seja ele qual for, claro, desde que não fira os princípios imutáveis das Escrituras. O culto a Deus é ininterrupto. Esta dicotomia, no entanto, é uma das causas que tem gerado como efeito a falha da Igreja em influenciar o mundo e subverter a ordem maligna que paira sobre ele (Cf. I João 3:8, I Pedro 5:8).

Somos chamados por Jesus para sermos luz do mundo (Evangelho segundo Mateus 5:14). Mas isso é possível apenas quando estamos Nele (I João 2:6). E para isso é necessário abandonarmos a posição de sobreviventes, resultado de idolatria, e nos tornarmos mordomos, assim como Ele foi (Filipenses 2:5-7). O apóstolo Paulo exortou: “De fato, a piedade com contentamento é grande fonte de lucro, pois nada trouxemos para este mundo e dele nada podemos levar; por isso, tendo o que comer e com o que vestir-nos, estejamos com isso satisfeitos.” (I Timóteo 6:8).

A busca por enriquecimento, desvirtuado do princípio de mordomia, é idolatria. Não sou eu quem afirma, mas o próprio Jesus (Evangelho segundo Mateus 6:24). A distância entre a busca pela sobrevivência e pelo enriquecimento idólatra é muito tênue. Pois o coração do homem é corrupto e enganoso (Jeremias 17:9), o que torna a nossa alma insaciável (Cf. I Timóteo 6:10-11). Nunca estamos satisfeitos com o que temos. Sempre queremos mais. E isso nos faz buscar o enriquecimento tendo o elemento sobrevivência como ferramenta. E é exatamente este equívoco que o apóstolo Paulo exorta Timóteo e os cristãos que ele pastoreava evitarem.

Há muito a dizer sobre isso. Minha tentativa produzirá um texto exaustivo e longo, todavia incompleto. Mas trabalho é algo no qual precisamos refletir. Temos sido sobreviventes ou mordomos?

Em breve, mais reflexões sobre este tema. Até lá!

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