terça-feira, 10 de setembro de 2013

O caráter do Logos divino

Matheus Viana

Estima-se que o Evangelho segundo João tenha sido escrito entre os anos 80 e 95 d. C. Sim, a data é incerta. Assim como são incertos – sei que a expressão é forte – o caráter e significado da afirmação de que Jesus é a Palavra – Verbo, em outras traduções – de Deus. Jesus é a Logos de Deus. Para termos uma pequena noção do impacto de tal afirmação, precisamos fazer uma análise, ainda que breve, dos contextos social, religioso e intelectual vigentes na época em que foi escrita.

Jerusalém, assim como toda a Judeia, estava sob o jugo do império romano que, por sua vez, era culturalmente influenciado pela filosofia clássica grega (helenística). Contudo, o judaísmo, religião oriunda da Lei mosaica, também difundia sua grande parcela de devoção. Por isso, a Igreja Primitiva era alvo de uma verdadeira miscelânea religiosa. Ao lermos as cartas, principalmente as paulinas, vemos a apologia dos apóstolos frente ao judaísmo, ao gnosticismo dentre outras seitas que surgiram nos primeiros séculos do Cristianismo.

No entanto, não podemos desconsiderar o peso do judaísmo no desenvolvimento do Cristianismo nos primeiros séculos. Os apóstolos foram formados no berço do judaísmo. Paulo, um dos principais representantes e fomentadores do Cristianismo, foi um fariseu ortodoxo. Mas, em nossa análise, precisamos levar em conta os dois tipos de judaísmos existentes na ocasião: o da Palestina e o da Alexandria.

O da Palestina foi o que Jesus enfrentou, exercido pelos fariseus, cuja ênfase, por conta de seu caráter nacionalista, dava-se na observância dos ritos e das leis mosaicas. Além disso, considerava as hipóstases (atributos da substância) divinas. Um caso hipostático, por exemplo, é a Sabedoria. Mesmo não sendo considerada como Deus, – o que transformaria o monoteísmo em politeísmo -, a Sabedoria foi algo criado por Deus e usado por Ele para formar o universo e tudo o que nele há. Baseado neste entendimento, Salomão, referindo-se a ela em primeira pessoa, afirmou: “O Senhor me possuiu no princípio de seus caminhos e antes de suas obras mais antigas. Desde a eternidade fui ungida. Desde o princípio, antes do começo da terra.” (Provérbios 8:22-23).

Já o judaísmo praticado na Alexandria, por conta da produção da Septuaginta (tradução do Antigo Testamento em grego), tinha forte influência helenística, o que colaborou para a intelectualização da religião. O principal representante do judaísmo alexandrino foi Filo (30 a. C – 45 A.D). Judeu devoto e erudito, Filo desenvolveu uma definição de Logos completamente preponderante na época em que o Evangelho segundo João foi produzido. Considerando-se discípulo de Platão, definia Deus como um ser plenamente transcendente e inacessível. Um ser sem qualidades, pois Sua transcendência não permitia qualquer tentativa humana de usar adjetivos naturais e racionais para defini-Lo. Consequentemente, afirmava que Deus não possuía nenhum tipo de relação com o universo natural.

Contudo, tal afirmação era contrária ao pensamento platônico que considerava a formação e o governo divino - a quem chamava de Demiurgo - sobre o universo. Por isso, Filo dizia que a Logos era o mediador entre Deus e o universo. Ou seja, era o ser usado por Deus no mundo inteligível – que Platão definia como mundo das ideias/metafísico – para agir no mundo natural – que Platão definia como sensitivo. Esta ação de Deus que Filo teorizou, no entanto, não é tão simples como parece.

Para Ele, a Logos é a síntese entre o pensamento racional de Deus, a elaboração de Seu projeto e propósito no “mundo inteligível” e a verbalização para a existência (estabelecimento) no “mundo sensitivo" (natural). É o que comumente definimos como trazer a realidade espiritual para ser manifesta no natural. Deus criou o universo pelo “Haja”. Mas essa verbalização foi antes pensada, planejada e projetada. Todo este processo, de acordo com Filo, foi feito pelo Logos. No entanto, ele não obteve a revelação de quem é este Logos. O que o levou a defini-Lo, com todo seu arsenal intelectual helenístico, como uma espécie de desdobramento do próprio Deus. Pois, conforme vimos, afirmava que a transcendência de Deus não Lhe permitia agir no universo. Por isso, “criou” a Logos para este fim.

Mas João conheceu este Logos. Andou com Ele durante três anos. E afirmou: “E o Logos se fez carne, e habitou entre nós e vimos a glória do unigênito do Pai.” (Evangelho segundo João 1:14). Por isso tinha autoridade para dizer que o Logos não era apenas um desdobramento hipostático do próprio Deus. Ele era e é o próprio Deus. Baseado neste fato, e também na revelação que teve do Cristo ressurreto em sua dramática viagem à Damasco, Paulo elucida: “Jesus é a sabedoria (gnose) e o poder (dinamus) de Deus.” (I Coríntios 1:24).

Referência bibliográfica

Kelly, J.N.D. Patrística, origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé cristã – São Paulo: Vida Nova, 1994.

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