segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

O Pão da Presença.



Matheus Viana

“Dá-nos hoje o pão nosso de cada dia.” (Evangelho segundo Mateus 6:11)

Que tipo de pão é esse? Natural ou espiritual? Ambos. Mas não podemos  esquecer do pão intelectual. O clamor ensinado por Jesus, alvo de nossa reflexão, é parte de Sua oração. Ele é antecedido pelo pedido da vinda do Reino de Deus que demanda que Sua vontade seja feita na terra como é nos céus (Evangelho segundo Mateus 6:10).

Este aspecto refere-se ao resgate do propósito original: Que o homem seja o representante de Deus, que exerça na terra o mesmo governo que Ele exerce nos céus (Salmos 115:16). Foi este o mote que levou Jesus a dizer a Pedro: “Nesta pedra eu edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não resistirão contra ela.” (Evangelho segundo Mateus 16:18).

O apóstolo Paulo preconizou que o Reino de Deus não é comida ou bebida, mas paz, justiça e alegria no Espírito Santo (Romanos 14:17). Ou seja, não é uma instituição física como pensava, infelizmente, a Igreja durante a idade média. Sim, ainda há quem pense assim. Contudo, Ele tem sua manifestação no âmbito natural. Tratando a Igreja como representante do Reino de Deus, Abraham Kuyper elucidou:

“A Igreja sobre a terra não faz subir luz para o céu, mas a Igreja no céu deve fazer sua luz descer sobre a terra.[1]

Disse também:

“A Igreja verdadeira, celestial, invisível deve manifestar-se na Igreja terrena.”[2]

Após jejuar durante 40 dias, Jesus teve fome (Evangelho segundo Mateus 4:2). Ela não era espiritual. Ao ser anteriormente batizado por João Batista, foi cheio do Espírito Santo. Também não era intelectual. Seu intelecto estava devidamente alimentado, pois venceu as tentações usando a Palavra de Deus ao bradar: “Está escrito”. Sua fome era natural. Por isso o tentador lhe propôs que transformasse pedra em... pão (Evangelho segundo Mateus 4:3). Embora Jesus tenha refutado tal proposta dizendo que a Palavra de Deus é o nosso verdadeiro alimento, sua fome natural foi saciada por anjos após vencer o tentador (Evangelho segundo Mateus 4:11). O pão espiritual, embora vital, não anula nossa necessidade do pão natural, tampouco do intelectual. As respectivas recíprocas também são verdadeiras.

Jesus, em outra ocasião, afirmou ser o Pão que Deus concede a nós: “Declarou-lhes Jesus: ‘Digo-lhes a verdade: Não foi Moisés quem lhes deu pão do céu, mas é meu Pai quem lhes dá o verdadeiro pão do céu. Pois o pão de Deus é aquele que desceu do céu e dá vida ao mundo’.” (Evangelho segundo João 6:32-33).

Disse também: “Eu sou o pão da vida. Os seus antepassados comeram o maná no deserto, mas morreram. Todavia, aqui está o pão que desce do céu, para que não morra quem dele comer. Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Se alguém comer deste pão, viverá para sempre. Este pão é a minha carne, que dou pela vida do mundo.” (Evangelho segundo João 6:48-51).

Ao instituir a Eucaristia (Ceia), Jesus disse aos Seus discípulos que deveriam realizá-la em memória Dele (Cf. I Coríntios 11:23-25). Isso é culto racional, pois ela abrange os três níveis aqui analisados (Cf. Atos 2:42-43). O pão partido e distribuído por Jesus saciou a necessidade física dos discípulos (Evangelho segundo Marcos 14:22). A Ceia realizada pela Igreja Primitiva consistia de uma espécie de banquete, que ficou conhecida como festa ágape. Ou seja, a necessidade natural dos participantes era saciada. Mas não se tratava de um mero jantar. O alimento natural possuia uma simbologia espiritual: a obra de Cristo com todos os seus desdobramentos. Por isso, a Ceia deve ser realizada em memória do sacrifício e Senhorio de Cristo. O que demanda uma intelectualidade submissa a Ele. Para isso, nosso intelecto precisa ser alimentado pelo Pão de Sua Palavra.

Ser Cristão é distribuir de Seu Pão. O episódio do primeiro milagre da multiplicação, onde os discípulos distribuíram alimento à grande multidão que seguia Jesus (Evangelho segundo Marcos 6:30-43), foi significativo. Semelhantemente, somos chamados a distribuir o alimento que é fruto de Seu legado e poder. Devemos suprir nossos próximos em suas necessidades físicas, espirituais e intelectuais. Pois este é o caráter da Ceia instituída por Jesus Cristo.

A ética apostólica preconiza: “Não é certo negligenciarmos o ministério da Palavra de Deus, a fim de servir as mesas. Irmãos, escolham entre vocês sete homens de bom testemunho, cheios do Espírito de sabedoria. Passaremos a eles esta tarefa e nos dedicaremos à oração e ao ministério da Palavra.” (Atos 6:2-3).

Vemos neste versículo as três necessidades que a Igreja é chamada a suprir: servir as mesas (necessidade material/natural), oração e ministério da Palavra (espiritual/intectual). Sim, as necessidades espirituais e intelectuais são coesas, pois o culto que Deus instituiu é racional. Toda espiritualidade desprovida de razão é misticismo. E toda intelectualidade desprovida de espiritualidade (sobrenatural) é racionalismo. Ambas são deturpações do cristianismo. Portanto não há, no exercício da ortodoxia cristã, como desvencilhá-las.

Para servirmos, no entanto, devemos receber. Os discípulos receberam, cada um, pequenos pedaços de pão e peixe (Evangelho segundo Marcos 6:41). A multiplicação aconteceu na medida em que Jesus partiu e compartilhou o alimento com os discípulos, e esses com a multidão. Não foi um surgimento súbito de uma grande quantidade. Pelo contrário. A multiplicação seguiu o compasso do compartilhar.

Não podemos compartilhar sem antes receber. Tal fato faz emergir a seguinte questão: Qual pão tem suprido nossas necessidades? Não podemos, nesta ocasião, esquecer da parábola do filho pródigo contada por Jesus (Evangelho segundo Lucas 15:11-24). Sua fome social de viver independente do pai o fez ser acometido de uma intensa fome material. Tão dramática que desejou comer o que os porcos comiam.

As parábolas contadas por Jesus tinham caráter reflexivo, pois transmitiam valores e códigos éticos do Reino de Deus. Por isso, devemos refletir sobre a situação, embora fictícia, do filho pródigo e nos questionarmos se, como ele, não temos se alimentado de comida de porcos. Pois todo alimento que não tenha Jesus como essência deve ser considerado como tal.

Jesus não é apenas o maná de Deus aos homens, é também a personificação dos pães da proposição que ficava sobre a mesa do Lugar Santo. Eles também são chamados de pães da Presença (Êxodo 25:30). Somente na Presença de Deus, manifesta através de Sua Palavra (Evangelho segundo João 5:39), é que encontramos este Pão.

Bom apetite!


[1] KUYPER, Abraham. Calvinismo; traduzido por Ricardo Gouvêa, Paulo Arantes. - São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2014. p. 70.
[2] Ibid, p. 71.

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