terça-feira, 18 de abril de 2017

Cultura e o ser cultural

Matheus Viana

Tudo o que está relacionado à nossa vida, no campo material, tem sua origem na terra ou na natureza de forma geral. Nossas roupas são feitas de matérias-primas originadas de plantas, como por exemplo, o algodão. As sandálias, tênis ou sapatos que calçam nossos pés contêm borracha e látex extraídos de seringueiras. Nossas habitações são pavimentadas por pedras, tijolos (que vêm do barro), de blocos (compostos por minérios encontrados na natureza), de ferro (outro minério), madeiras entre outras matérias-primas naturais.

A eletricidade que nossas moradias dispõem vem da água e, em casos específicos, do sol ou do vento, entes naturais. Os instrumentos usados na produção de músicas que apreciamos (refiro-me ao quesito música, não aos barulhos eletrônicos produzidos atualmente) são feitos, entre outras matérias-primas, de madeira e de couro animal. O figurino dos atores da peça de teatro a qual assistimos, as bolas usadas em jogos de futebol (ou qualquer outra modalidade esportiva que use este artifício redondo) dos quais participamos, os uniformes e chuteiras dos jogadores... Enfim, toda atividade humana possui profunda relação com a natureza, com a terra. O que isso significa?
     
O ser humano produz, em todo momento, cultivo ou cultura. Ao ler este texto, estás cultivando o conhecimento. E a prática dele, o exercício chamado de sabedoria, também é produção de cultura. Portanto, uma pessoa culta não é apenas a que possui uma grande e variada quantidade de conhecimento, mas a que está inserida em uma sociedade e é capaz de receber e produzir cultura.
    
Imagine você e sua família morando em uma terra isolada, erma e distante! Não terão alternativas, caso queiram sobreviver, a não ser cultivarem o ambiente onde vivem. Procurarão extrair da natureza recursos, seja através da caça, da pesca ou da agricultura. Cultivarão o lugar não apenas para extrair alimentos, mas também roupas e materiais para a fabricação de uma habitação. Alimento, vestuário e habitação. Necessidades humanas básicas. Cultura/cultivo é o homem exercendo o ato de viver ou sobreviver no ambiente em que vive.
    
Na tentativa de cultivar a natureza, métodos, sistemas e instrumentos (ferramentas) - os quais são conhecidos como artifícios – surgirão e serão passados para as gerações posteriores como herança de costumes e valores. É a consolidação da cultura de uma sociedade[1] que, neste caso, é a sua família. Conforme Aristóteles definiu em seu livro Política, sociedade é o conjunto de famílias[2]. Isto, portanto, tem sua origem no Éden. A cultura humana também, pois provém do fato de o homem ter sua origem na terra (Gênesis 2:7). Ele é produto de uma cultura: A do Criador do universo. O cultivo do homem sobre a terra, que é a forma como ele cultua o Criador, é resultado do fato de ele ser, antes de tudo, o cultivo de Deus. Por isso foi criado para receber, produzir e exercer cultura. O teólogo e historiador Justo González elucidou:

“... parte do propósito de Deus ao criar a criatura humana e fazê-la livre é que essa criatura desenvolva cultura, que se relacione com seu ambiente em criatividade e amor, à imagem e semelhança da relação de Deus com o mundo e a humanidade.”[3]

E a finalidade disto é se relacionar com o Criador a fim de expressar Sua Glória à toda criação. O ato de cultivar o lugar onde habitava - no jardim do Éden - era exercer culto ao Criador, pois estava cumprindo o chamado mandato cultural, o qual chamo, a exemplo do apóstolo Paulo, de culto racional (Gênesis 2:15). Cultuar é glorificar. E glorificar é obedecer. Daí o termo ortodoxia, que, no sentido bíblico, ao se referir à doutrina correta, fala da forma correta de glorificar a Deus, já que os apóstolos, sobretudo Paulo, utilizaram o termo doxa para falar da Glória de Deus. Assim, fica claro que não basta cultuar a Deus da forma correta. A intenção também precisa ser correta. Pois é possível seguirmos à risca a liturgia doutrinária com o intento de nos envaidecermos em nossa devoção.
    
Quando ajo de acordo com a tradição cultural de uma sociedade, estou obedecendo-a. Com isso, exerço culto, pois cultuo (glorifico e honro) os que a criaram e a consolidaram, ainda que inconscientemente. Ao fazer do homem um ser vivente, Deus instituiu-lhe uma ética (Gênesis 1:28). Ela era a cultura sob a qual devia viver. Exercendo-a, estaria cultuando-Lhe. A qual cultura você é submisso? O que tens produzido e exercido como fruto de sua submissão a ela? Nossas ações e seus consequentes resultados respondem tais questões.
    
O cristão que pauta sua vida no materialismo histórico-dialético cultua, ainda que de forma inconsciente, Karl Marx e seus asseclas, bem como todo o projeto revolucionário de engenharia social e de destruição da moral judaico-cristã que lhe é próprio. Os que cultuam o liberalismo econômico cultuam Mamon e o individualismo, desdobramentos da idolatria humanista. Cultura cristã, por sua vez, é o homem agindo de acordo com o legado de Jesus Cristo revelado pela Sagrada Escritura (Cf. Evangelho Segundo João 5:39). Ele encarnou para exercer na terra a cultura do Céu, para cultivar em nós Sua vontade a fim de que possamos exercê-la onde vivemos. Resumindo, realizarmos Culto racional.



[1] GONZÁLEZ, Justo. Cultura & Evangelho: O lugar da cultura no plano de Deus. Hagnos, 2011. p. 38-39.
[2] ARISTÓTELES. Política. Nova Fronteira (Saraiva de bolso), 2011. p. 21.
[3] GONZÁLEZ, Justo. Cultura & Evangelho: O lugar da cultura no plano de Deus. Hagnos, 2011. p. 54.

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