terça-feira, 6 de junho de 2017

Legados culturais e traços sociais

Matheus Viana
    
As ações de indivíduos corruptos resultam em uma sociedade perversa. Tal perversidade, no entanto, passa pelo âmbito da família. Conforme afirmou Aristóteles, sociedade é o conjunto de famílias. Esta também é a definição bíblica, que é anterior à do filósofo. Não é em vão que a engenharia social, peculiar do sistema vigente que visa destruir os absolutos judaico-cristãos, não mede esforços em mutilar a estrutura familiar teonômica com todo seu mosaico de conceitos e valores.
    
Ao analisarmos a depravação da humanidade que levou Deus a subverter o mundo com dilúvio, vemos que ela foi desdobramento da degradação familiar que, por sua vez, foi resultado da corrupção dos indivíduos. A sentença bíblica é clara: “Por causa da perversidade do homem...” (Gênesis 6:3). No entanto, como ela se manifestou? “Quando os homens começaram a multiplicar-se na terra e lhes nasceram filhas, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram bonitas, e escolheram para si as mulheres que lhes agradaram.” (Gênesis 6:1-2).
    
Os filhos de Deus – independente do que esta expressão signifique - manifestaram suas vilanias nas famílias até então compostas. Neste trecho das Escrituras vemos que os homens estavam cumprindo o mandato cultural estabelecido por Deus (Cf. Gênesis 1:28), mas Ele não era mais o ser cultuado. Isto resultou na formação de famílias desfiguradas em relação ao padrão familiar constituído por Deus ao homem. O que degradou toda a humanidade, exceto uma família: a de Noé. E foi através dela que Deus recomeçou.
    
Tratemos, contudo, a narrativa do capítulo 6 de Gênesis como efeito. Do pecado original – corrupção do indivíduo (Romanos 5:12) - até a depravação de toda a humanidade, houve dois homens que geraram, por meio de suas respectivas famílias, dois tipos de sociedade: Caim e Sete. Ambos, filhos de Adão. As diferenças entre eles, bem como de suas respectivas sociedades, foram abismais. Para termos uma pequena ideia de tamanha discrepância, Enoque, o homem que andou com Deus ao ponto de ser tomado por Ele, foi descendente de Sete (Gênesis 5:24). Já Lameque, o homem de “estopim curto” que matou um homem por tê-lo ferido e um menino por tê-lo machucado, foi descendente de Caim (Gênesis 4:24). Analisemos estas duas sociedades de modo a contextualizá-las com a nossa realidade.
    
Caim, o primeiro fratricida da história, casou-se e gerou um filho chamado Enoque, que significa iniciado. Depois disso, fundou uma cidade com o nome do filho, a primeira mencionada em toda a Bíblia (Gênesis 4:17). Aqui é clara a relação entre a tríade indivíduo, família e sociedade. Mas o ponto fulcral é a circunstância primária que levou Caim a trilhar sua saga: “Então Caim afastou-se da presença do SENHOR e foi viver em Node, a leste do Éden.” (Gênesis 4:16). Duas coisas a serem analisadas: O afastamento da presença de Deus e a morada em Node. Node significa peregrinação. Peregrinação, neste contexto, significa uma vida distante do propósito de Deus.
    
Houve dois momentos no episodio da criação do ser humano: O primeiro foi quando, ao receber do fôlego de vida de Deus (Gênesis 2:7), o ser humano passa a existir e ter consciência de sua existência. O segundo foi quando ele recebeu a ética de Deus que lhe deu propósito e sentido para sua vida (Gênesis 1:28). Ao abandonar a ética de Deus para se aventurar na ética proposta pela serpente, ele deixou de viver de acordo com o propósito pelo qual foi criado. A perda do sentido foi súbita. Recordemos que um dos significados de pecado (hátá) é errar o alvo/deixar de cumprir o propósito. Peregrinação é a jornada do ser humano em busca de sentido, que pode ser encontrado apenas em Deus encarnado na pessoa de Jesus Cristo, o Logos.
    
Andando a esmo, no labirinto de sua peregrinação, Caim formou uma família e, consequentemente, uma cidade. As gerações posteriores definiram os traços culturais desta sociedade. Jabal, por exemplo, foi o pai dos que moram em tendas e criam rebanhos (Cf. Gênesis 4:20). Seu irmão, Jubal, foi pioneiro na arte da música. E Tubalcaim foi ferreiro. Por crescer inserido nesta sociedade que propiciou o florescer de sua natureza corrompida, Lameque reproduziu o legado homicida de Caim: “Eu matei um homem porque me feriu, e um menino porque me machucou. Se Caim é vingado sete vezes, Lameque o será setenta e sete”. (Gênesis 4:24).
    
Vejamos, agora, a sociedade oriunda de Sete. Ele gerou um filho chamado Enos. Conforme a Bíblia afirma: “Nessa época começou-se a invocar o nome do SENHOR”. (Gênesis 4:26). O texto hebraico, de forma transliterada, afirma: “vayiqra´ shemo-`et `enosh `az huchal liqro`beshem `adonay” – “Ele chamou o nome dele de Enos. Então ele começou chamar pelo nome de SENHOR”. Ou seja, Enos, cujo nome significa ser humano/homem, passou a invocar o nome do SENHOR. Vemos aqui, ainda não na forma estabelecida por intermédio de Moisés, o ministério sacerdotal.
    
Diante desta análise, surgem algumas indagações: De onde Enos tirou a ideia de invocar o nome do SENHOR? Foi ele ensinado pelo pai, ou aprendeu sozinho? Quem lhe transmitiu o conhecimento do SENHOR de modo que O invocasse? Apesar de a Escritura não dizer explicitamente, a própria narrativa em si é um indício de que Enos foi ensinado a realizar esta invocação, este culto racional.
    
Invocar o nome do SENHOR. Não foi em vão que Jesus, ao ensinar Seus discípulos como orar, declarou: “Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o seu nome.” (Evangelho segundo Mateus 6:9 – Ênfase acrescentada). Ao falarmos neste princípio, não há como não evocar o diálogo entre Deus e Moisés: “Moisés perguntou: ‘Quando eu chegar diante dos israelitas e lhes disser: O Deus de seus antepassados me enviou a vocês, e eles me perguntarem: ‘Qual é o seu nome?’ Que lhe direi?’. Disse Deus a Moisés: ‘Eu sou o que sou. É isto o que você dirá aos israelitas: Eu sou me enviou a vocês’”. (Êxodo 3:13-14).
    
Neste mote, podemos afirmar que invocar o nome do SENHOR significa declarar, prestando-lhe o culto racional, que Ele é o único e verdadeiro Deus de modo a viver segundo tal declaração. O apóstolo Paulo, citando o profeta Joel, declarou: “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (Romanos 10:13). Pedro, em sua mensagem após o evento em Pentecostes, também. Ambos usaram a expressão epikalésetai, cujo significado é clamar. De acordo com o Léxico do Novo Testamento de Wilbur Gringrich e Frederick Danker, esta expressão é usada para indicar que a pessoa invocada é pertencente ao nome que ela possui[1].
    
Às vésperas da encarnação de Jesus Cristo, o anjo advertiu a José sobre a gravidez de Maria: “Ela dará à luz um filho, e você deverá lhe dar o nome de Jesus (Yahoshua/Yeshua – Yahweh/Yaho salva), pois ele salvará o povo de seus pecados.” (Evangelho segundo Mateus 1:21). O nome determina o ser. O ser, por sua vez, determina o fazer. Jesus não se tornou O Salvador por salvar. Ele salvou – e salva - por ser O Salvador desde antes da fundação do mundo (Apocalipse 13:8).
    
As ideologias existentes no mundo não visam apenas prover uma ética para a humanidade seguir e, através dela, encontrar sentido existencial. Mas, principalmente, redimi-la. Todas elas têm início na premissa de que o mundo está caótico. Uma das diferenças entre elas, no entanto, é a situação do ser humano em relação a tal realidade.
    
Invocar o nome do SENHOR é resultado de se ter a consciência de que o mundo está caótico por culpa do próprio homem. Seu pecado degradou o ambiente em que habita (Cf. Gênesis 3:17). Por isso, não há redenção do mundo sem a redenção do homem. Esta, por sua vez, se dará apenas pela obra de Jesus Cristo, o Deus que se fez homem. É neste mote que o apóstolo Paulo declarou: “Pois a natureza foi submetida à inutilidade, não pela sua própria escolha, mas por causa da vontade daquele que a sujeitou (o ser humano), na esperança de que a própria natureza criada será libertada da escravidão da decadência em que se encontra, recebendo a gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Romanos 8:20-22).
    
O materialismo histórico/dialético, que desfruta de hegemonia no pensamento coletivo, não considera a depravação humana (antropológica). Na contramão, propõe apenas uma redenção social (que contempla a cultura, a educação, a política e a economia) como “solução final”. Sim, o termo pertencente ao movimento nazista vem bem a calhar. Anulando a necessidade de redenção do ser humano, anula-se, subitamente, O Redentor. Assim, não há razão para invocar o nome do SENHOR. Cria-se, a partir de então, uma sociedade anticristã.

Foi exatamente isto que o apóstolo Paulo exprimiu em sua carta aos romanos: “... trocaram a Glória do Deus imortal por imagens feitas segundo a semelhança do homem mortal (...) Trocaram a verdade de Deus em mentira, e adoraram e serviram a coisas e seres criados em lugar do Criador, que é bendito para sempre. Amém” (Romanos 1:23 e 25). O culto a Deus foi substituído pelo culto ao homem. Ele divide-se em duas partes: O culto ao homem em si e o culto à sua obra.
    
No outro polo, temos o libertarianismo que manifesta um materialismo característico. Ele vê, à semelhança do histórico/dialético, qualquer figura de autoridade como elemento opressor. Contudo, na contramão do supracitado, ele não se resume à ética social promovida pelo Estado (Status Quo), mas à capacidade redentora do próprio homem, sem precisar da ajuda (capacidade) ou intervenção (autonomia) de ninguém. O que, além de desconsiderar a obra redentora de Jesus Cristo, elimina o princípio comunitário – e não comunista - do cristianismo.
    
Caim, embora reconhecendo seus pecados de idolatria e de fratricídio, - cujo reconhecimento não foi fruto de arrependimento, mas da abordagem disciplinatória de Deus sobre ele - não se atentou à necessidade de se redimir. Sintoma da plena ausência de culto racional. Conforme afirmei no livro Culto Racional:

“... a base de um culto racional é a consciência de que somos pecadores e a consequente necessidade de redenção que temos ao ponto de desejarmos ser libertos e redimidos como fruto de Sua misericórdia e Graça (I João 4:10). Este desejo nos leva a renunciarmos nossa vontade e realizarmos a vontade de Deus como consequência de seguirmos a Cristo (Evangelho segundo Mateus 16:24). Este processo é chamado de cristianismo”.[2]



[1] GINGRICH, F. Wilbur. Léxico do Novo Testamento: grego, português; revisão Frederick W. Danker; tradução Júlio P. T. Zabatiero – São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 83.
[2] VIANA, Matheus. Culto racional: A interação entre as razões divina e humana - Ribeirão Preto: Legis Summa, 2016. p. 50.

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