terça-feira, 23 de setembro de 2014

Ensaios sobre o mal - Parte I

Matheus Viana

O mal possui várias faces. Muitas delas estão estampadas na realidade que nos cerca, seja de perto ou de longe. Mediante este drama, é comum surgir a questão: “Como pode existir um Deus bom diante de tanto mau?”. Esta é uma das principais indagações feitas pelos ateus, mas não é “patrimônio” deles.

Epicuro (341-270 a. C) elaborou o seguinte argumento: “Ou Deus quer abolir o mal, e não pode; ou ele pode, mas não quer; ou ele não pode e não quer. Se ele quer, mas não pode, ele é impotente. Se ele pode, e não quer, ele é cruel. Mas se Deus tanto pode quanto quer abolir o mal, como pode haver maldade no mundo?”.

Este argumento está recheado de problemas lógicos. Os que pensam exatamente assim ou de forma semelhante acreditam que a razão é o único fator em exercício. Mas não é! A indagação tem sua origem na razão, já a indignação tem na emoção. Ou seja, por mais que pareçam racionais, questionamentos desta espécie têm caráter sentimental.

Por isso, quanto mais usamos a razão, dissipando toda a neblina da ideologia pré-concebida e do sentimentalismo, vemos que as próprias questões são inconsistentes, assim como toda e qualquer tentativa de transformar a existência do mal em evidência para a não-existência de Deus ou em colocar em descrédito Suas atribuições consideradas pelos teístas.

Jesus certa vez contou uma parábola sobre certo jovem, a qual podemos tirar algumas lições sobre o tema aqui abordado. Caminhando para o clímax da parábola, Ele disse: “Ele desejava encher o estômago com as vagens de alfarrobeira que os porcos comiam, mas ninguém lhe dava nada.” (Evangelho segundo Lucas 15:16). Se lermos este versículo isolado de todo seu contexto, podemos ficar indignados: “Como pode uma pessoa chegar a tamanha desolação?”.

Se lermos o versículo seguinte da mesma forma, – “Caindo em si, ele disse: ‘Quantos empregados do meu pai têm comida de sobra e eu aqui, morrendo de fome!’” - esta indignação se intensifica: “Como pode o pai deste jovem permitir isto?”. É assim que agimos quando nos deparamos com o mal. Trocamos apenas os personagens Pai por Deus. Contudo, ignoramos o início da parábola. O jovem protagonista escolheu abandonar o pai e viver de maneira DISTANTE e INDEPENDENTE. A degradação a qual alcançou foi mera consequência de sua escolha. O pai não teve culpa alguma.

Há quem refute tal afirmação indagando: “Mas se o pai não tivesse dado a parte da herança nem permitido que ele saísse de casa, o mal não teria acontecido”. Todavia, tal atitude seria pautada na falta de liberdade, algo que o ser humano tanto deseja e anseia. Rousseau dizia que o homem nasce livre e, por isso, a liberdade não é apenas uma benesse natural, mas um direito irrevogável.

De acordo com a antropologia judaico-cristã, o ser humano foi formado por Deus em plena liberdade, pois fora feito à imagem e conforme a semelhança de um Ser Supremo que é livre (Gênesis 1:27). É neste mote que Jesus declara: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (Evangelho segundo João 8:32). Ou seja, o ser humano é, em sua essência original, livre. E liberdade implica em capacidade de escolher. C.S Lewis elucida: “Uma vez mais, a liberdade de uma criatura deve significar liberdade de escolha e esta implica a existência de coisas entre as quais escolher.”1.

Assim como o pai do jovem protagonista da parábola, mesmo se entristecendo, permitiu que o filho seguisse suas escolhas, Deus também permitiu. Conforme Agostinho preconizou em seu livro Livre-arbítrio, o mal existe como consequência do mau uso que o ser humano fez do livre-arbítrio que Deus o concedeu. Mas há quem diga: “Por que Deus, então, permitiu que o ser humano escolhesse?”. Porque Deus queria que o ser humano tivesse uma comunhão com Ele baseada na escolha, na liberdade de amá-Lo, e não como resultado de ser a única possibilidade.

Conforme elucida Agostinho ao seu discípulo Evódio: “... se o homem carecesse do livre-arbítrio da vontade, como poderia existir esse bem, que consiste em manifestar a justiça, condenando os pecados e premiando as boas ações? Visto que a conduta desse homem não seria pecado nem boa ação, caso não fosse voluntária. Igualmente o castigo, como a recompensa, seria injusto, se o homem não fosse dotado de vontade livre.”2.

Sobre o exercício da escolha, João Calvino diz no livro I de suas Institutas: Portanto, Deus proveu a alma do homem com a mente, mediante a qual pudesse distinguir o bem do mal, o justo do injusto, e, assistindo-a a luz da razão, percebesse o que se deve seguir ou evitar. Razão porque os filósofos chamaram a esta parte diretiva to hégemonikon (o dirigente). A esta mente Deus associa a vontade, em cuja alçada está a escolha.”3.

Nossas atitudes são classificadas como “boas” quando destoam das “más”. Portanto, se não existisse a possibilidade de o ser humano fazer o mal, ele também não faria o bem. Pois o bem existe por ser diferente do que é mal. Se não houvesse o que é mal, não faríamos o bem, mas somente o que fosse possível para nós. O bem é considerado bem por ser precedido por uma escolha. Jesus disse em Mateus 7:10-11: “Se vocês, apesar de serem maus, sabem dar coisas boas aos filhos, quanto mais o Pai de vocês, que estás nos céus, dará coisas boas aos que lhe pedirem!” (Evangelho segundo Mateus 7:10-11).

Apesar de sermos maus, escolhemos e fazemos coisas boas a quem estimamos, mesmo sendo capazes de escolher e fazer o que é mal, por sermos movidos pelo amor. Se existisse apenas o bem, o ser humano seria escravo dele. Logo, nossas atitudes não poderiam ser classificadas como boas, mas apenas como ordinárias. Agostinho elucida ao seu discípulo Evódio: “Pois do mesmo modo que um cavalo que se extravia é melhor do que uma pedra que não pode se extraviar, ficando sempre em seu lugar próprio, por faltar-lhe o movimento e sensibilidade, assim uma criatura que peca por sua vontade livre é melhor do que aquela outra que é incapaz de pecar por carecer dessa mesma vontade livre.” 4.

Continua...

Notas:

1 - LEWIS. C. S. O problema do sofrimento; tradução Alípio de França Neto. – São Paulo: Editora Vida, 2009. Pg. 36.

2 - AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio; tradução, organização, introdução e notas de Nair de Assis Oliveira – São Paulo: Paulus, 1995 – Patrística. Pg. 75.

3 - CALVINO, João. As Institutas; ou Tratado da Religião Cristã. Capítulo XV. Pg. 195.

4 – Idem 2, pg. 166.

Nenhum comentário:

Postar um comentário