quinta-feira, 28 de novembro de 2013

O pensamento dialético

Matheus Viana

Desde o advento do pecado, quando o ser humano preteriu a verdade de Deus à sua vida para se apegar ao discurso ardiloso da serpente, nossa maneira de pensar e agir está diante de duas éticas. No Éden, Eva se viu entre a ética divina e a que a serpente lhe propôs. A segunda, portanto, levou vantagem.

O desejo do ser humano em buscar a verdade a respeito de sua vida e do mundo em que vive tem origem neste fatídico episódio. Desde então, este desejo gravita entre duas éticas: a que Deus estabeleceu ao ser humano no momento de sua criação e a que o ser humano tenta construir para si na tentativa de se apegar a um padrão de conduta.

No ofício de capelão, me deparo com muitos jovens ávidos por construir uma verdade para pavimentar suas vidas e, com isso, encontrar um sentido para elas. Questão de causa e efeito. Não há sentido na vida humana quando esta se encontra apartada da verdade de Deus a ela. Sem sentido, o ser humano não tem outra opção a não ser procurar outras “verdades”, melhores chamadas de padrões éticos/morais ou religiosos.

Este pensamento dialético é claramente demonstrado em Deuteronômio 28: a bênção e a maldição. Posso ouvir o esbravejar de alguns: “Mas foi Deus quem colocou estas éticas diante dos hebreus.”. Não, não foi. A maldição veio ao mundo por conta do pecado do ser humano (Romanos 5:12), fato que Agostinho atribui ao “mau uso do livre-arbítrio”. Já a bênção é o resultado de andarmos segundo a plenitude ética de Deus a nós, ainda que seja composta de lutas e sofrimentos (Evangelho segundo João 16:33).

Durante todo o Antigo Testamento, principalmente o período dos profetas, vemos Deus usando pessoas para alertar Seu povo que estava diante de duas éticas: a de Deus, dada através de Moisés, e a dos povos estrangeiros. Vemos isto claramente no discurso de Elias diante de seu desafio com os sacerdotes baalins: “Até quando coxeareis entre dois pensamentos? Se Iavé é Deus, adore-o. Mas se Baal é Deus, adore-o.” (I Reis 18:31).

Jesus disse: Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus.” (Evangelho segundo Mateus 5:20). Aqui, Jesus estava alertando seus ouvintes sobre uma realidade dialética: a de Deus e a dos fariseus que, mesmo fundamentada na Lei divina, dada através de Moisés (Evangelho segundo Mateus 23:1-2), estava permeada pelo jugo humano. Por isso Jesus adverte: “Porque o meu fardo é leve.” (Evangelho segundo Mateus 11:30).

Os apóstolos da Igreja Primitiva se depararam com a abordagem de duas éticas: a dos judaizantes, na avidez de fazerem prosélitos, e os ensinamentos de Jesus, o Cristo. Esta realidade é claramente demonstrada no concílio de Jerusalém (Atos 15). O apóstolo Paulo, em suas cartas, alerta os leitores sobre a realidade dialética que os enreda, em certo período entre o cristianismo e o judaísmo, e outro entre o cristianismo e o gnosticismo. Na carta aos romanos, no capítulo 8, vemos Paulo retratando a realidade dialética que se dá entre a vida na carne – ações oriundas de nossa natureza caída e corrompida pelo pecado - e a vida no Espírito – ação do Espírito Santo de Deus em nós através de Sua Palavra. No capítulo anterior, no entanto, Paulo advertiu, usando sua própria vida como testemunho, da dialética entre o bem que deseja fazer, mas não consegue, e o mal que não deseja, mas realiza (Romanos 7:18-19). Eis o nosso drama.

O mundo atual também é influenciado pelo pensamento dialético. Várias religiões, incluindo o cristianismo durante o período da patrística, são influenciadas, em grande parte, pela dialética platônica que consiste no movimento da alma humana entre o mundo inteligível (metafísico) e o sensitivo (natural). Já o pós-modernismo vigente é influenciado pela dialética hegeliana – criada por Georg Hegel – que consiste na síntese entre éticas contrárias, chamadas de “tese” e “antítese”. Esta dialética pavimentou a dialética histórico/materialista de Karl Marx que analisa a ação humana mediante o seu ser social, ou seja, sua consciência e essência – quem o indivíduo, de fato, é – resumem-se apenas à ação que a matéria – contexto político (Estado), econômico (Capital) e social (Status quo) – exerce sobre sua vida.

Contudo, à margem da dialética que nos enreda, está a tentativa do ser humano de derrubá-la. O ateísmo é um exemplo significativo, pois deseja estabelecer apenas a realidade natural (material), extinguindo desta forma a metafísica e, consequentemente, Deus. A Igreja atual, infelizmente, também é repleta de pessoas que tentam dissuadir o ser humano em sua capacidade – e necessidade – de pensar de forma dialética e, por que não dizer, antitética. Muitos pastores, dizendo serem “porta-voz” de Deus, emitem ensinamentos completamente contraditórios aos do Mestre. No entanto, o próprio Jesus disse que Suas ovelhas reconhecem a Sua voz (Evangelho segundo João 10:4). O ouvir de Sua voz faz Suas ovelhas reconhecerem que a voz que emite uma ética contrária à Palavra, ainda que seja a de um “porta-voz” de Deus, não é a voz do Bom Pastor. Tal fato as faz compará-la ao Evangelho que Jesus emite através das Sagradas Escrituras. Este é o exercício do pensamento dialético.

O primeiro e principal sintoma das chamadas ‘massas de manobras’, comuns em meio à Igreja atual, é a destituição de todo e qualquer pensamento dialético. Desprovidos desta capacidade, as pessoas receberão, como a mais pura e genuína verdade divina, os ensinamentos que são contrários à ética (não me refiro à "ética" no mesmo sentido do liberalismo teológico, que reduziu o cristianismo apenas ao nível racional) cristã, mas emitidos por um “porta-voz” de Deus. Jesus reconheceu a autoridade dos fariseus, mas alertou Seus ouvintes a, acima de tudo, exercerem o pensamento dialético (Evangelho segundo Mateus 23:1-23). 

O apóstolo Paulo elogiou os cristãos em Bereia por exercerem este pensamento, pois compararam seus ensinamentos com os descritos nas Escrituras (Atos 17:11). Conosco não pode ser diferente. Conforme disse Lutero na dieta de Worms: "Meu pensamento está cativo à verdade de Cristo.".

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